Preliminares de Salvador

Ainda quinta-feira, 8 de janeiro.
(de como o herói de nossa estória se fode exemplarmente)

Pois bem, estou eu a balançar tranqüilo a cabeça e despretenciosamente a matar algumas células auditivas. Eis que minha mãe volta com o pão e diz alguma coisa, que eu, é óbvio, não entendi, pois estava de fones de ouvido. Penduro-os no pescoço e gentilmente¹ peço para que ela repita a última oração, algo que traduzo para a curiosa leitora como "que barulho de água é esse?". Bem despreocupado, eu escuto realmente algumas gotas a cair. Nada que toque o meu coração, porém. Falo a primeira coisa que vem à mente, que é provavelmente o correto -- eu quase nunca estou errado, já deve ter percebido o astuto leitor--: "Ah, deve ser o ar condicionado", e já começo a corrigir a posição dos fones. Minha mãe, entretanto, insiste em me incomodar e chamar minha atenção para um suposto barulho de água. Então eu percebo que o ar condicionado não está ligado, e mesmo se estivesse, ele não é daqueles que pinga. Aperto o botão "pause" no Media Player, concentro minha atenção no ambiente, e noto, pela primeira vez, muito mais forte e um pouco mais distante que o gotejar, um som intenso de grande quantidade de água caindo, como se o chuveiro estivesse aberto ao máximo de sua capacidade, mas com a energia elétrica desligada. Para reforçar esta impressão, o som vem do andar superior da casa.

Um pouco atordoado, um pouco curioso, sigo minha mãe escada acima. Antes não tivesse seguido, porque nada me preparou para o que viria a seguir: o corredor que leva ao meu quarto está alagado; no meu quarto, há um corte transversal no teto, através do qual massivas quantidades de água jorram, molhando minha cama, minha estante, minhas roupas de viagem a Salvador. A profundidade -- sim, a água cobriu todo o chão do aposento, para só depois se espalhar para o corredor -- varia de cinco a oito milímetros. Desesperadamente, eu corro para pegar baldes e posicioná-los exatamente embaixo das goteiras. Minha mãe corre e fecha a água da rua, mas nada acontece. Então ela se lembra que o sotão é um só, dividido com a casa geminada à nossa -- a de minha vó --, e corre para fechar o outro registro -- ali na casa vizinha. A água pára de subir, mas o efeito é o mesmo de atirar merda ao ventilador ligado e contar até mil pra desligar: o caos já havia se alastrado. Pela janela, eu vejo pequenas gotas caindo, e concluo que eram elas que pareciam gotas de ar condicionado velho.

O jeito mais simples e rápido de secar aquele oceano seria pegar um rodo e empurrar, pacientemente, até o ralo mais próximo. Óbvio, o jeito mais fácil e simples é impossível e impraticável, porque não há ralos no meu quarto, não há ralos nos quartos vizinhos ; o ralo mais próximo é no banheiro, e para chegar até ele é preciso passar pelo corredor em que a escada que liga o térreo ao primeiro andar dá -- tentar escorrer a água por ali resultaria numa belíssima cachoeira em degraus com fundo de imitação de mármore. Agradável aos olhos, filhadaputável ao coração e à casa. Qual foi a solução adotada, então? A longa, dolorosa e penosa, é claro. Caso o leitor um dia passe por situação semelhante, aqui vai a receita:

Como secar oitenta e sete litros d'água do seu quarto sem se valer de rodos e ralos.

Ingrdientes:
Um ou mais panos de chão;
Um ou mais baldes;
Uma privada.

Procedimento:
Leve o pano de chão à poça de água e deixe encharcar. Após encharcado, leve rapidamente o pano ao balde e o esprema. Repita cento e quarenta e sete vezes. Quando o balde estiver cheio de água, despeje o conteúdo na privada. Repita a operação duas mil sentecentos e trinta e oito vezes. Para aproveitar completamente a experiência, você pode olhar para os céus e pensar "mas eu fiz tudo direito dessa vez! Eu não deixei para a véspera, eu me preparei para enfrentar a minha péssima memória de curto prazo, eu fiz tudo sozinho, sem enrolar ninguém, nem a mim mesmo; então por que o castigo?"

Que merda foi essa afinal de contas, devem estar se perguntando os leitores mais curiosos. Pois bem, elucido-lhes. Há muito tempo, os chuveiros da minha casa e da casa vizinha a minha sofriam um problema de baixa pressão. Como eles ficavam muito próximos à caixa d'água, quase no mesmo nível que ela, a água vinha fraquinha, vinha broxada, demorava hoooras pra tirar o shampoo do cabelo -- às vezes era mais fácil desistir. Meu sapientíssimo pai comprou então dois sifões (um pra nossa caixa, outro pra caixa da vó) pra turbinar a potência, e o sifão serviu bem, até o dia que deu um pepino qualquer num dos canos e ele teve que subir pra arrumar (também conhecido como o dia que eu acordei com "Aperta... Solta... Aperta... Solta... Aperta... SoltAAAAAH! APERTA!APERTA!APERTA!APERTA!"), se fudeu lá em cima, ficou com raiva, jogou o sifão fora e comprou um chuveiro superturbo ultramacho paudurão. Mas o sifão da caixa da vó ficou lá, anos e anos, esquecido, aumentando a pressão do chuveiro... até que ele estourou, e quando o sifão estoura, ele estoura pra caralho. Ficou jorrando água, que ficou inundando o sótão até encontrar um ponto de alta permeabilidade, que ocorre de ser justamente um racho, até então imperceptível a olho nu, no teto do meu quarto.

Enfim, após enxugar o Atlântico com um pano de prato, fui para São Caetano, onde amigos fiéis sempre me acolhem e mantêm um colchão² à minha espera.
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1. -- Que foi, velha?

2. Infelizmente para mim, um dos moradores da república está namorando, e pegou o colchão emprestado para a namorada dormir. Eu fiquei com o sofá de madeira e almofada irregulares com grandes botões metálicos.

3 comentários:

Quéroul disse...

HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!

não é possível qualquer outro comentário.
e eu que já sabia da história, simijei de novo de rir. ei, mas eu páro qdo eu lembro dos meus livros ali boiando... ¬¬

conta de salvadooooooooooooooor loooogo!

très julie disse...

Quéroul disse...

HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!

não é possível qualquer outro comentário.


concordo, até por causa do e ele teve que subir pra arrumar (também conhecido como o dia que eu acordei com "Aperta... Solta... Aperta... Solta... Aperta... SoltAAAAAH! APERTA!APERTA!APERTA!APERTA!"), que é sensacional!

fabiana disse...

Enxugar o Atlântico com um pano de prato não é uma tarefa fácil, então, nobel pro Emil!

Beijo