A volta dos que não foram¹

Olá, cara leitora espantada. Eu imagino que você tenha aberto esta página só para lembrar o que aqui acontecia e, de repente, quem diria?, nova desatualização. (veja só como sou dissimulado: ao ler estas primeiras linhas, quase que certamente a leitora esquecerá que eu estou fazendo propaganda da nova postagem no msn, no orkut, no twitter, na wikipedia, e sabe-se lá mais onde a internet 2.0 permita)

Tenho cá dois motivos que, espero, a convençam a perdoar minha negligência para com este espaço. O primeiro deles é que, agora já passado mais de um ano da viagem, minha memória começa a falhar. E, para o texto, isto é muito melhor: deixo o cérebro preencher as lacunas, e não mais preciso ficar tão preso a detalhes menores, como a verdade factual dos acontecimentos, que como sabemos, pode ser muito inconveniente tanto ao leitor quanto ao escritor: uma conclusão mais correta e divertida dos acontecimentos, uma tirada de enriquecer o repertório ter que ceder lugar a algo mais chato e monótono pela bobagem de apenas não ter acontecido.

O segundo motivo é que finalmente tenho milhões de coisas a fazer. Eu poderia estar estudando, poderia estar revisando, mas estou cá escrevendo. E também ando um pouco enfadado de kobolds e quetais. Assim sendo, apresento-lhes aquela maravilhosa:

Terça-feira (acho), (provável) 13 de janeiro

Conforme dito há muito tempo atrás, numa galáxia distante, nós já sabíamos como chegar ao Mercado Modelo, e sabíamos quem deveria pedir informação sobre ônibus. Pois bem, foi isso mesmo que se sucedeu: caímos na cara do elevador Lacerda sem grandes aborrecimentos.

Claro, meu aborrecimento viria a seguir: achei o lugar muito pra turista ver. Caro, gente fantasiada de baiano, lotado de gente, com turista saindo pelo ladrão. O problema não sou eu, claro, que como já percebeu a leitora, sou muito legal. Mas já disse o feio filósofo: o inferno são os outros. E eu complemento dizendo: os outros, principalmente o nosso irmão. Que, obviamente, amou o lugar, andou por todas as barraquinhas, experimentou instrumentos, tocou, soprou, batucou. E comprou um monte de coisas, bem para o desespero de uma das comentaristas deste espaço.

Aquele monte de pacotes, especialmente aquele comprido e incarregável, criava uma dificuldade para a família: como continuar nossa turistagem por Salvador sem ter que carregar uma sacola em cada mão e uma na cabeça? Para nossa sorte, os vendedores locais eram extra-simpáticos, e permitiram que deixássemos nossas singelas tralhas estocadas num canto de uma barraquinha.

Movemo-nos então para a Feira de São Joaquim, e agora sim, cara leitora, eu realmente começava a apreciar a viagem. O lugar é pé no chão e barro entre os dedos, nada daquelas frescuras de normas sanitárias, direitos dos animais (nem, quiçá, direitos humanos). O lugar vende temperos, farinhas, camarões, pombas e até cabras. Sim, cara leitora impressionável: pombas e cabras para, como dizem naquele concessionário de rede televisiva nacional, bruxaria na casa de magia negra. Na máxima expressão da última flor do lácio, inculta e bela: achei foda pacaraio. E ainda voltei carregado de farinha, massa para acarajé, camarões secos e duas moringas. As moringas, fique claro, escolhi pelo meu interesse em padrões decorativos pós-geométricos.

Acabadas as compras, apresentou-se novo dilema: onde comer? E, já cansados das andanças, resolvemos que o melhor mesmo era voltar ao Mercado, rejuntar nossas tralhas, e ficar pelo restaurante do piso superior mesmo. E ninguém adivinharia que esta seria uma sábia decisão: o restaurante era bom e o preço era justo! Na verdade, eu posso chamá-lo de barato, visto que uma feijoada baiana para duas pessoas era o mesmo preço do prato para uma pessoa do restaurante do hotel. Enfim: eu indico e garanto.

Após a esbórnia alimentícia, voltamos para o hotel, onde fomos curtir uma piscina. Dona Ligia ficou puta da cara, porque Frê resolveu praticar alguns mergulhos e outras evoluções aquáticas enquanto ainda estava de barriga cheia, mesmo contra a advertência materna. Entretanto, minha impressão é que grande parte de seu nervosismo advinha mesmo era do fato de Frê não ter morrido, ou sofrido sequer uma congestãozinha. Desobediência demais para uma pessoa só.

E assim se passou nossa terça-feira, cara leitora. No fim das contas, não inventei nada de extraordinário para o dia. Juro que a memória me ajudou para tal -- e muito. Entretanto, se me sobrou vontade de inventar, quem me falhou foi on engenho.

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1. Lima, Jurandir Pereira. in: minha infância inteira.

Desatualizando

Olá, cara leitora pacientíssima. Faz um tempo que eu não a presenteio com a graça da minha escrita, e por isso eu só posso pedir desculpas. Mas o momento crítico passou, eu tenho outras coisas pra torrar minha paciência, e então decidi torrar a dos meus leitores também, com uma atualização de blog. Ou, no estado que a coisa anda, com uma desatualização de blog, porque eu ainda tenho uma viagem pra terminar. Então, sem mais delongas, eu lhes apresento:

Segunda-feira, 12 de janeiro

Então que eu já estava esperando o sol fura concreto de Salvador, e nem acordei tão cedo, só no horário necessário pra pegar o ônibus da companhia de turismo. E estou eu lá, no horário, até levemente adiantado, tomando meu café-da-manhã reforçado pra enfrentar o dia de tour, quando me aparece um filhadaputa de amarelo gema e bermuda azul-emei apressando a minha refeição -- porque não tem nada mais agradável para o cliente do que ter sua refeição interrompida quando ele está de acordo com horário que a sua empresa marcou. E é muito óbvio que esse é o tipo de coisa que só acontece comigo, que odeio ser cobrado quando estou certo -- que é 98% das vezes, aliás.

Bom, como o leitor pôde adivinhar, eu, que fui cobrado, junto com todo mundo que ficou pronto no horário, fiquei esperando dentro do ônibus quinze minutos no hotel seguinte, porque, é claro, alguém decidiu (acertadamente, diga-se de passagem) não ir nesse tour, ligou na empresa, avisou, e a empresa não repassou a informação para o guia. Essa foi só a primeira cagada de muitas, não só segunda-feira. Então eu acho que eu posso começar a falar o nome pra fazer a propaganda negativa, como eu havia prometido. Mas antes, uma estorinha:

Faz um tempo, eu e Quéroul estamos planejando motar mais um blog cujos temas seriam mais ou menos enrrascadas em viagens, viagens pra lugares legais pra quem não pode gastar muito, e por aí afora. O primeiro nome que me veio à cabeça foi "Tô Virando Água". O conselho executivo por enquanto se mostra desfavorável à idéia, e a minha segunda opção é "Não Vá de CVC". Porque o custo-benefício do pacote turístico não é tão bom quanto parece, porque você pode fazer o mesmo passeio por um preço menor, terá mais opções de hospedagem, e principalmente porque se você for de CVC, a CVC vai te proporcionar ainda mais cagadas do que as que já acontecem naturalmente em toda viagem.

Bom, a primeira, e eu estou sendo bonzinho contando como uma só, foi apressar o meu desjejum pra me deixar esperando quinze minutos em seguida. A segunda foi a seguinte: uma das paradas do tour era no Farol da Barra e uma vista ao museu do farol. Pois bem, o guia anunciou que crianças e idosos pagavam meia entrada. "E estudante", perguntei -- ora, éramos eu e Frê, estudantes e munidos dos nossos documentos -- e a resposta foi "Nopes, só crianças e idosos". E após deixar o dinheiro com ele e entrar no museu, obviamente que eu estava certo e estudante pagava meia, conforme afirmava a primeira plca na porta de entrada. Com o dinheiro economizado, seria possível levar ou meu pai ou minha mãe para dar uma volta no museu, mas eu voltei para o ônibus achando que eles fizeram bem em não ir. Vocês sabem, eu sou nerd, eu amo museu, e se eu não gosto, é porque o museu é muito caído. Ou porque ele tem aquelas explicações ultra-nacionalistas, ou ultra-regionalistas, a ponto de serem incômodas... ou mentiras... ou tudo junto. Sério, do tipo fulano é herói porque domou o elemento gentio.

Enfim, o passeio continuou, e aí aconteceram os dois tipos de discursos que eu mais odeio nessa vida, só que combinados num só. Eeeee! Uma mistura de direitismo ingênuo painho vai salvar o mundo com aquele que começa "sem preconceito, mas" e termina com a bobagem mais preconceituosa do mundo. Tudo começou porque um dos sítios do passeio era a Lagoa do Abaeté. Imagine, visitar um dos locais mais bonitos e tradicionais de Salvador! "Finalmente, mandou bem, CVque, caraio!? Como assim não vai poder descer do ônibus?". Isso mesmo, caro leitor atônito. Eu fui até a Lagoa do Abaeté, o ônibus estacionou lá perto, e eu só pude ver pela janela. E isso foi porque eu dei azar de pegar justamente o guia preconceituoso? Não. Eu realmente peguei um guia preconceituoso "Sabe como é, sem preconceito, mas aqui é uma área mais popular e pode acontecer alguma coisa com vocês, vocês sabem como essa gente é... Ainda mais depois das últimas administrações... Eu não vou falar de política aqui, não vou incomodar vocês falando nisso... Mas na época do ACM... Meu Deus, que homem bom, que grande político, ele dei um jeito nessa cidade" (juro, esta não é um representação cliché do povo soteropolitano. O homem realmente falou tudo isso que eu escrevi) --, mas eu só vi a Lagoa pela janelinha porque nenhum ônibus da CVC pára pros turistas descerem. Não é tudo o que você sonhou para as suas férias?

O tour terminou numa praia, onde a gente tinha a opção de sentar num quiosque (caro) conveniado à CVC (cara), comendo porções (caras), bebendo cerveja normal (cara) ou água de coco (cara). Eu e Frê demos um rolezão, nos assustamos e demos risada porque o mar é todo cheio de pedra -- e quando eu digo pedra, eu quero dizer que há pedras gigantescas, de uns vinte metros, com várias pontas, provavelmente causadas pelo atrito com o mar há séculos, e completamente escorregadias (só eu pensei perigo mortal?) -- e as pessoas entram sem medo... e voltamos para o ônibus.

Onde pudemos ser incomodados pela vendedora de cocadas sponsored by CVC.

Passeando

Domingo, 11 de janeiro

Daí que eu acordei com uma claridade ensurdecedora, e a primeira coisa que pensei foi "deusdocéu, meio dia, perdi o café da manhã!". Apertando os olhos, tateando a cômoda, tentando entender como o sol vencia a cortina tão grossa que parecia lona e a porta preta que dava na varanda, encontrei o celular, abri e absurdei: cinco da manhã. Juro, juro: cinco da manhã o sol já está quase no meio do céu. E ele fura até concreto.

Muito bem, dormi até a hora do café, acordei, tomei um desjejum reforçado e estava pronto para turistar. Seu Jurandir, meu digníssimo pai, foi até a recepção, pediu informação sobre ônibus e estávamos todos prontos. Ou eu, ingenuamente, pensei assim. Deixe-me lhe contar algo sobre meu pai, leitor não parente:

Quando éramos crianças, costumávamos, a família toda, acampar numa dessas cidades do interior Paulista com nome estranho começando em Ita. Não era acampamentão, meio do mato, caça-sua-comida-faz-cocô-na-moita. Era só armar a barraca lá num clube que tinha banheiro, piscina, chuveiro, restaurante, essas coisas que podem deixar um acampamento divertido. Um belo dia, o velho resolve levar a gente pra passear. Entra a famíla toda no carro, sai do clube, cai na estrada, e seis horas de "calma, eu sei o que eu estou fazendo, tá comigo tá com deus, não vou pedir informação porque eu não estou perdido". Sim, seis horas perdidos na estrada. Dá pra começar a medir o senso de direção e a teimosia por aí. Pois bem, nós deixamos essa pessoa pedir informações sobre como chegar ao centro de Salvador.

Eu ainda não tinha me ligado nisso, e estava lá tranqüilo no ônibus, observando a paisagem, lendo as placas. Deveria ter feito como o Frê, e prestado mais atenção a Jurandir, que olhava para os lados com aquela cara de "Ai caramba, onde é que eu estou?" e dava um puta pala de turista. Aí eu ouço Frê, com seu sempre gentil jeito, perguntar "Ae véio, onde é que a gente vai descer", ao mesmo tempo que reparo que uma placa apontava centro histórico pra esquerda, enquanto o nosso ônibus seguia para a direita. E a gente foi parar numa rodoviária caída, meio sinistra, completamente vazia.

Se a leitora nunca viu, eu sugiro que continue sem ver o que é um Emiliano nervoso. Um que de xiliquenta, um misto de raiva e choro contido, dizendo "nunca mais nessa vida faço [blank] com você(s)". E era assim que eu estava quando aportei na rodoviária. Mas eu me estabeleci rapidamente, quando percebi que Jurandir continuaria apenas olhando para um lado e para o outro com cara de perdido. Eu comecei a ler as placas e Frê usou suas habilidades socias pra descobrir onde é que nós estávamos e como é que diabos sairíamos dali.

Após o susto inicial de domingo, saímos de frente pra esquina da banca de jornal com entrada de concurso pra alguma coisa aí. Não sei bem, como pode ver o leitor mais atento. Mas foi engraçado ver uma moça pedindo dinheiro emprestado pro jornaleiro pra pagar o taxi, que o homem tava nervoso. E o mais incrível foi que o jornaleiro emprestou. Nunca em São Paulo.

Enfim, andamos, seguimos as placas, e fomos dar na praça Castro Alves, que tem uma estatuazona do poeta, e uma puta visão do mar. Mas domingo a cidade é vazia demais, fica tudo meio deserto, e fomos aconselhados a continuar andando, meio perigoso e tals (na verdade, depois descobrimos é que os soteropolitanos é que andam meio medrosos e tudo é meio perigoso. Mas primeiro as primeiras coisas(acho que não é bem isso em português)). E saímos no Elevador Lacerda -- que não, não tem vista panorâmica, as pessoas usam como meio de transporte entre a cidade baixa e a cidade Alta, eu já sabia disso, e agora você também sabe, não vá pagar mico quando for pra lá.

O Elevador dá de frente para o Mercado Modelo, o Fre é músico, pirou, queria comprar berimbau, cuíca, tambor, tudo na hora. Eu achei muito pra turistão ver e meio caro. Mas comprei um par de óculos escuros na barraquinha ali fora, porque ai que terra clara!

O Mercado tem restaurante lá em cima, mas de domingo ele não abre (vai entender. é tipo fechar na hora do almoço). Então saímos atrás de restaurante, encontramos, era muito fresco, essas coisas de culinária contemporânea (lixo pop. aliás, acho que está mais pra world music). Pedimos informação no posto de gasolina, o moço falou que tinha ali na marina, mas era meio longe. Fomos andando assim mesmo, e oi? trezentos metros. Ainda assim, achei tudo meio fresco -- caramba, comi avestruz com aspargos, e o aspargo era aquele verde, não o em conserva! Meio caro, mas tava todo mundo com muita fome, e ninguém a fim de procurar mais.

Ainda pegamos um táxi e fomos até a casa onde minha prima morou, conhecer a dona, de quem ela gostava muito, e resgatar a mala. E dá-lhe família Lima andando com uma mala enorme, meio mofada, meio avariada, pelas ruas de Salvador. Voltamos para o hotel, porque no dia seguinte tinha o passeio "grátis" da companhia de viagem. E eu, com a nota mental gritando na cabeça "daqui pra frente, ninguém pede informação sobre ônibus a não ser eu".

Enfim, Salvador

Ainda Sábado, 10 de janeiro.

Após um vôo de duas horas que durou só uma -- fato que me fez completamente mudar de idéia sobre o horário de verão -- estava eu, finalmente, na terra dos meus antepassados. Saí de São Paulo de maneira clichê: tempo feio, garoinha, cheguei em Salvador clichê: solzão e quente pra caralho. Valeu ter planejado ir de bermuda, mesmo tendo perdido hóóóras preso no detector de metal.

Enfim, agrupamo-nos junto ao guia da companhia de viagem (companhia cujo nome não será dito agora, porque eu não quero fazer nenhuma propaganda que não seja extremamento negativa -- o que será muito fácil, devido às cagadelas futuras que aqui relatarei, prometo, em breve), e, após apenas um pequeno engano quanto às informações prestadas (digo apenas porque, descobri depois, um é muito abaixo da média diária que a companhia apronta com os seus turistas), entramos num ônibus e nos dirigimos ao hotel.

Tenho que dizer: bonito demais. No caminho do aeroporto até o primeiro hotel em que o ônibus pára é possível observar diversos bancos de areias e dunas, lindas casas, um belíssimo horizonte... Enfim é com muita beleza que Salvador nos recepciona. Se tivesse eu uma câmera, juro que batia umas fotos. Faço uma pausa para que a leitora mais romântica possa imaginar o caminho, e para que a mais prática posso googlar algumas imagens.








imagine com força








Como eu dizia, paramos no primeiro hotel, e, eu que sou ateu convicto, pedi forte "Por favor, Deus, não permita que este seja o meu hotel". Deve pensar o leitor experiente em viagens "Devia ser uma espelunca", e se pensou isso mesmo, então pensou errado. Na verdade, era o esquema mais patrão que eu já vi: ficava mesmo na praia, de frente pro Atlântico, não precisava nem atravessar a rua -- até porque quase não tinha rua. Não tinha cerca, não tinha parede pra separar das casas em volta, não tinha nem casas em volta, e era justamente esse o meu medo: ficava muito longe mesmo da cidade de verdade. Sabe, hotel pra quem está em lua de mel, só quer saber de pôr até as partes pegarem fogo (com a vantagem de ter o mar ali pertinho pra apagar e refrescar), e volta dali a quinze anos, se ainda estiver junto, pra ver a cidade histórica, mas grandes coisas, gostei mais da primeira vez. Bom, dei sorte, não era mesmo meu hotel, o ônibus tocou dali comigo dentro respirando aliviado.

A segunda parada, sim, foi a do nosso hotel. Gostei muito: pertinho da orla da praia, vários pontos de ônibus em volta, mais cara de cidade mesmo. O hotel ficava em cima de um morro, o que dava uma vista espetacular do mar, e juro, um dos horizontes mais belos que eu já vi nessa vida. Sério, era tão ampla minha vista que dava pra sacar que o mundo era redondo. E azul, como era tudo azul!

Pausa para imaginação.

Bom, o posicionamento do hotel trazia uma pequena desvantagem: pra chegar na porta de entrada seria preciso enfrentar duas putz ladeiras, daquelas de quarenta e cinco graus, uma mais curta, outra mais comprida. E sim, a mais comprida era a mais inclinada. Mas o guia pareceu ler as preocupações que rondavam minha cabeça, e prontamente respondeu, com aquele sotaque tão característico e arrastado: "Quanto à ladeira, não se préocupém nãão. Havia um funiiculahr para levar os hóspédes até lá ém cima, que está ém manuténçãão. Mas o hótel tem mótóristas que fazem o sérvííço agora". Aliás, vale notar: quase ninguém fala assim arrastado, tudo mentira essas novelas. Que há sotaque, há, sem dúvida, mas devagar assim, só um a cada cem, chutando alto.

Enfim, entramos porta adentro, paramos na recepção e começou nossa relação de amor e ódio com o hotel. Meu quarto, que eu dividiria com Frê, estava pronto, mas o quarto de meus pais ainda estava sendo arrumado. O moço da recepção então nos entregou a chave do quarto pronto (que eram aqueles cartões magnéticos, acho super chique), as comandas da famíla, e sugeriu que esperássemos por lá. Quando o quarto estivesse pronto, o mensageiro nos avisaria.

Dirigimo-nos até o meu quarto, e descobrimos que os nossos quartos ficavam no andar mais baixo do hotel. Pra piorar, o elevador só subia, o único acesso possível era enfrentar três lances de escadas. O que não é muito ruim, salvo se você estiver cansado devido ao vôo e ao ônibus, e os carregadores do hotel decidirem que sua bagagem não é problema deles.

Carregamos nossas tralhas corredor e depois escada abaixo, entramos no quarto, pagamos um pequeno mico porque ninguém sabia como ligar a luz -- mas a moça que limpava nos ensinou: tem que colocar o cartão magnético (isso, aquele mesmo, que serve como chave) no input de luz (gente, muito luxo!) --, e ficamos esperando o mensageiro avisar que outro quarto estava pronto. E esperamos, esperamos, esperamos...

Aí enjoamos de esperar, e pensamos "cacete, estamos em Salvador, gente! Vamos esperar andando na orla, conhecendo o pedaço". Subimos para deixar a chave e as comandas na recepção, e surpresa! O quarto já estava pronto há um tempão. Aparentemente, mandar o mensageiro significa "se virem". Mas mesmo assim, o plano era bom. Descemos a pé a rampa do hotel (descida, todo santo ajuda), e fomos dar uma volta nas redondezas. Que parecia cidade, mas só parecia. No fim das contas, este hotel também era longe de tudo, só parecia perto. Tinha umas barraquinhas na praia, mas nada demais. E como estávamos com dona Ligia, nenhum lugar ali era limpo o suficiente para jantarmos. Após uma água de coco, e a pequena decepção de estar longe da cidade de verdade (tudo bem, havia pontos de ônibus, e havendo transporte público, eu me viro fácil), voltamos para jantar no hotel.

O leitor de boa memória (afinal, quantos parágrafos já se passaram?) se deve lembrar que o guia nos informou que os motoristas do hotel levavam os clientes até a entrada, lááá em cima. Mas faltou passar essa informação aos motoristas do hotel. Basicamente escalamos até a recepção. E, para finalizar o dia, comemos um jantar over-priced, demos uma olhada nas dependências do hotel e fomos dormir. Sem problemas, o dia seguinte era domingo, estaríamos descansados, e a viagem começaria pra valer.

Quase lá

Bom, caros leitores, alguns de vocês devem ter notado a falta de atualização deste blog. Garanto-lhes, não escrevi antes por dois motivos justíssimos. O primeiro deles é que se me acometeu doença, embora não gravíssima, fortíssima, daquelas de, como dizia minha vó nos tempos em que ela ainda dizia algo de relevante e são, botar os bofes para fora; o segundo é que tive muita preguiça.

Devo dizer, também, que houve um terceiro motivo: quando comecei a digitar o texto anteontem, acabou a luz. Isso tira a vontade de escrever de qualquer um, vocês sabem. Equivale ao "eu quero que você me fode". Não dá, não dá, pára tudo e volta só amanhã.

Mas passado o mal-estar, espantada a preguiça¹ e recuperada a energia, encontramo-nos mais uma vez para continuar o relato de minhas férias em Salvador. O leitor mais perspicaz deve ter notado que o espaço da narrativa nem chegou perto de onde deveria ainda.

Sábado, 10 de janeiro.

Bem, deve a leitora de melhor memória se lembrar de como eu planejei e arrumei minha mala duas vezes muito antes da véspera da viagem. Lembro-a de que inclusive as roupas usadas nas semanas anteriores foram planejadas de acordo com a proximidade da viagem. Portanto, não é difícil, nem para o menos empata de vocês, imaginar a mistura de sentimentos que explodiu dentro do meu fígado ao ouvir, sábado de manhã, dia da viagem, Frê perguntando "alguém viu meu chinelo por aí?"


Assim como eu, meu irmão decidiu que fazer a mala na véspera era uma bobagem. Ao contrário de mim, ele achou que seria muito mais fácil arrumá-la no dia da viagem, meia hora antes de sair de casa. No mais, foi uma manhã agradabilíssima, com Frê nervoso porque não achava seus pertences, dona Ligia culpando Frê por sua falta de sono noite anterior, Emiliano nervoso porque já tinha deixado tudo pronto e não queria aquela demora, e dona Dedé nervosa, porque quando vocês não estão olhando ela fica brava.

Colocamos tudo no carro e dirigimo-nos para a casa de minha tia, onde deixaríamos minha avó e trocaríamos de motorista: minha prima nos levaria até o aeroporto. E tudo saiu conforme o planejado, salvo o check-in estar marcado para as dez horas, e às mesmas dez horas minha prima girava a chave para dar partida no carro. Isso mesmo, estávamos uma hora atrasados. Meu fígado já tinha virado geléia, vocês podem imaginar. Eu quase chorava por dentro, e por fora com certeza tremia. E em minha cabeça, eu me perguntava "Meu deus, uma hora de atraso. Como foi que fodeu tanto?".

Se eu soubesse o que viria a seguir, não teria ficado nem um pouco nervoso: não pegamos trânsito, nenhum, chegamos por volta de onze e quinze, pesamos as malas, passamos pelo detector de metal tranqüilamente², e assim que chegamos ao portão de embarque, ele se abriu e nós pudemos pegar o avião. Sim, cara leitora com muitas horas de vôo! Eu me esquecera que as companhias mandam você chegar duas horas mais cedo para lhe proporcionar o prazer da espera no portão de embarque, e foi isso que salvou minha vida.

Após duas horas de vôo, que contou como uma só, finalmente chegamos: Salvador!
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1. "Cacete, 100 canais na televisão e nada que preste. O que é que eu vou fazer enquanto The Mentalist não começa?"

2. Eu planejei inclusive com que roupa iria pegar o avião. Ora, se eu pousaria num dos estados mais quentes do país, nada mais lógico que já embarcar de bermuda. Bom, como eu sou um pouco magro, faz-se nescessário que algumas de minhas bermudas sejam acompanhadas de cinto. E a fivela faz o detector de metal apitar. Claro, como eu queria passar o mais rápido possível e ir logo para o portão de embarque, o cinto prendeu no passador e não saía de jeito nenhum. "Ahá, mas a fivela é destacável", lembrei-me. Destacável e enferrujada. Fiquei cinco minutos tentando tirar a desgraçada, e, para ficar com as duas mãos livres e completar a tarefa com mais facilidade, deixei o cartão de embarque com a moça do raio x. Claro que eu esqueci disso -- de tão feliz que fiquei quando finalmente passei pelo detector de metal sem apitar --, e só fui perceber que estava sem o cartão quando já me sentava pra esperar o portão abrir.

Explicações

Sexta-feira, 9 de janeiro.

Houve sol e calor, ainda bem! Foi possível lavar e secar boa parte das roupas molhadas, e minha mala não ficaria tão desfalcada. Para comemorar a viagem à terra dos nossos antepassados, fomos eu e Frê a um barzinho aqui perto de casa; também marcamos com Doo, que passaria lá, tomaria algumas cervejas conosco e deixaria a nossa câmera, que estava com ele.

A ida ao barzinho foi especialmente saborosa. Encontrei o Pedrão, que eu não via há muito tempo, e é sempre uma agradabilíssima visita; desenvolvemos uma teoria de maconha ser melhor que água, e que, prometo, um dia eu posto neste espaço; comi um bolinho delicioso; conversamos com um dos donos do bar sobre o período das greves aqui de São Bernardo... no meio da noite, Doo chega de carro, todo apressado, com aquela cara de "deu merda, minha irmã tá grávida e o pai da criança tá fugindo pro Haiti, eu só tenho uma hora pra pegar o cara antes dele entrar no avião" -- aliás, eu ainda não encontrei Doo depois que voltei, então eu não sei o que aconteceu, e acabo de perceber que estou muito curioso. Espero que a leitora não fique tão curiosa quanto eu, porque esta é uma resposta que demorará -- e deixa a câmera com Frê. Como nenhum de nós dois tinha onde guardá-la, colocamos na mala de Renan. Eu, o irmão regrado, fui para casa às onze; o irmão desregrado voltou só às quatro. nenhum dos dois se lembrou de pegar a câmera. Aliás, é bem provável que, enquanto eu escrevo esta postagem, quase um mês depois do ocorrido, ela ainda esteja com Renan.

É por isso que, nas próximas postagens, enquanto eu descrevo os locais belíssimos em que estive, o leitor deve parar ao final do parágrafo, fechar os olhos, e imaginar com bastante força.

Preliminares de Salvador

Ainda quinta-feira, 8 de janeiro.
(de como o herói de nossa estória se fode exemplarmente)

Pois bem, estou eu a balançar tranqüilo a cabeça e despretenciosamente a matar algumas células auditivas. Eis que minha mãe volta com o pão e diz alguma coisa, que eu, é óbvio, não entendi, pois estava de fones de ouvido. Penduro-os no pescoço e gentilmente¹ peço para que ela repita a última oração, algo que traduzo para a curiosa leitora como "que barulho de água é esse?". Bem despreocupado, eu escuto realmente algumas gotas a cair. Nada que toque o meu coração, porém. Falo a primeira coisa que vem à mente, que é provavelmente o correto -- eu quase nunca estou errado, já deve ter percebido o astuto leitor--: "Ah, deve ser o ar condicionado", e já começo a corrigir a posição dos fones. Minha mãe, entretanto, insiste em me incomodar e chamar minha atenção para um suposto barulho de água. Então eu percebo que o ar condicionado não está ligado, e mesmo se estivesse, ele não é daqueles que pinga. Aperto o botão "pause" no Media Player, concentro minha atenção no ambiente, e noto, pela primeira vez, muito mais forte e um pouco mais distante que o gotejar, um som intenso de grande quantidade de água caindo, como se o chuveiro estivesse aberto ao máximo de sua capacidade, mas com a energia elétrica desligada. Para reforçar esta impressão, o som vem do andar superior da casa.

Um pouco atordoado, um pouco curioso, sigo minha mãe escada acima. Antes não tivesse seguido, porque nada me preparou para o que viria a seguir: o corredor que leva ao meu quarto está alagado; no meu quarto, há um corte transversal no teto, através do qual massivas quantidades de água jorram, molhando minha cama, minha estante, minhas roupas de viagem a Salvador. A profundidade -- sim, a água cobriu todo o chão do aposento, para só depois se espalhar para o corredor -- varia de cinco a oito milímetros. Desesperadamente, eu corro para pegar baldes e posicioná-los exatamente embaixo das goteiras. Minha mãe corre e fecha a água da rua, mas nada acontece. Então ela se lembra que o sotão é um só, dividido com a casa geminada à nossa -- a de minha vó --, e corre para fechar o outro registro -- ali na casa vizinha. A água pára de subir, mas o efeito é o mesmo de atirar merda ao ventilador ligado e contar até mil pra desligar: o caos já havia se alastrado. Pela janela, eu vejo pequenas gotas caindo, e concluo que eram elas que pareciam gotas de ar condicionado velho.

O jeito mais simples e rápido de secar aquele oceano seria pegar um rodo e empurrar, pacientemente, até o ralo mais próximo. Óbvio, o jeito mais fácil e simples é impossível e impraticável, porque não há ralos no meu quarto, não há ralos nos quartos vizinhos ; o ralo mais próximo é no banheiro, e para chegar até ele é preciso passar pelo corredor em que a escada que liga o térreo ao primeiro andar dá -- tentar escorrer a água por ali resultaria numa belíssima cachoeira em degraus com fundo de imitação de mármore. Agradável aos olhos, filhadaputável ao coração e à casa. Qual foi a solução adotada, então? A longa, dolorosa e penosa, é claro. Caso o leitor um dia passe por situação semelhante, aqui vai a receita:

Como secar oitenta e sete litros d'água do seu quarto sem se valer de rodos e ralos.

Ingrdientes:
Um ou mais panos de chão;
Um ou mais baldes;
Uma privada.

Procedimento:
Leve o pano de chão à poça de água e deixe encharcar. Após encharcado, leve rapidamente o pano ao balde e o esprema. Repita cento e quarenta e sete vezes. Quando o balde estiver cheio de água, despeje o conteúdo na privada. Repita a operação duas mil sentecentos e trinta e oito vezes. Para aproveitar completamente a experiência, você pode olhar para os céus e pensar "mas eu fiz tudo direito dessa vez! Eu não deixei para a véspera, eu me preparei para enfrentar a minha péssima memória de curto prazo, eu fiz tudo sozinho, sem enrolar ninguém, nem a mim mesmo; então por que o castigo?"

Que merda foi essa afinal de contas, devem estar se perguntando os leitores mais curiosos. Pois bem, elucido-lhes. Há muito tempo, os chuveiros da minha casa e da casa vizinha a minha sofriam um problema de baixa pressão. Como eles ficavam muito próximos à caixa d'água, quase no mesmo nível que ela, a água vinha fraquinha, vinha broxada, demorava hoooras pra tirar o shampoo do cabelo -- às vezes era mais fácil desistir. Meu sapientíssimo pai comprou então dois sifões (um pra nossa caixa, outro pra caixa da vó) pra turbinar a potência, e o sifão serviu bem, até o dia que deu um pepino qualquer num dos canos e ele teve que subir pra arrumar (também conhecido como o dia que eu acordei com "Aperta... Solta... Aperta... Solta... Aperta... SoltAAAAAH! APERTA!APERTA!APERTA!APERTA!"), se fudeu lá em cima, ficou com raiva, jogou o sifão fora e comprou um chuveiro superturbo ultramacho paudurão. Mas o sifão da caixa da vó ficou lá, anos e anos, esquecido, aumentando a pressão do chuveiro... até que ele estourou, e quando o sifão estoura, ele estoura pra caralho. Ficou jorrando água, que ficou inundando o sótão até encontrar um ponto de alta permeabilidade, que ocorre de ser justamente um racho, até então imperceptível a olho nu, no teto do meu quarto.

Enfim, após enxugar o Atlântico com um pano de prato, fui para São Caetano, onde amigos fiéis sempre me acolhem e mantêm um colchão² à minha espera.
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1. -- Que foi, velha?

2. Infelizmente para mim, um dos moradores da república está namorando, e pegou o colchão emprestado para a namorada dormir. Eu fiquei com o sofá de madeira e almofada irregulares com grandes botões metálicos.